A Lenda do Poço Vaz Varela

Era no ano de 1249 e tinha começado já a conquista dos Algarve; a hoste portuguesa, comandada por D. Pelaio (Paio Peres Correia) tinha-se retirado do cerco de Tavira, ocupada pelos mouros, para Cacela, por virtude de umas trevas (tréguas) de trinta dias ajustadas com eles, então governados por Calis Caixa Sidra Manuel Adelaide de muito poder em encantamentos, e que tinha uma filha de dezoito anos, linda como a mais formosa variz do paraíso de Atafona e mais formosa do que as mais lindas rosas do seu jardim de sete fontes. Era ela a luz dos seus olhos e a alegria da sua alma negra de fradelho (escaravelho). Catarina ou Fátima se chamava ela.
Os mouros tinham rompido as tréguas pela morte à traição dos sete cavaleiros cristãos que, passando o rio Séqua, tinham ido em caçaria à cidade das Antas e o governador, prevendo um ataque decisivo tinha preparado tudo para a fugida, já pelas galeras do rio Gilão, onde estavam acomodadas muitas riquezas, já pelo caminho por debaixo do chão do castelo para a fonte da aguada das muitas bicas, hoje denominada fonte da praça, completamente desimpedida. Instava o governador Abdalah com a sua filha a que o acompanhasse, recusava-se, porém Fátima acompanhar o pai pelo muito apego que tinha à terra que guardava os ossos de sua mãe e que ela todos os dias regava com as pedras cristalinas, de suas lágrimas de prata; e como Sid Mohamed não pudesse vencer a resistência da filha e temesse que ela caísse nas mãos dos infiéis resolveu encantá-la por mil e um anos num dos ares destes sítios (…).
Então o governador fez no poço e sobre a filha sinais cabalistas acompanhados de palavras misteriosas, pronunciadas numa entonação musical muito triste e, lançando ao pescoço da filha o santo sino termano, já com a lua e estrelas no céu, a arremessou ao poço. A água do poço abriu-se; Fátima entrou no seu seio para ocupar o seu palácio encantado, e o pai ali se conservou a chorar até ás horas da meia-noite.
E ela ali se conservará por mil e um anos, se uma alma caritativa não aparecer que a queira redimir do encanto, sujeitando-se aos preceitos da lenda. No entanto, a pobre Fátima, no palácio encantado, conserva grandes valores em ouro e jóias preciosas que oferecerá ao seu desencantador (…)
Muitas pessoas da mais remota antiguidade até hoje têm transmitido pela tradição, sempre constante, que viram no seu tempo, encostado ao gargalo do poço, a moura encantada, umas vezes ao meio-dia em ponto, outras à meia-noite em pino. Factos que chegaram ao conhecimento de toda a gente e por isso estava o poço desamparado, apesar da sua água a melhor das proximidades de Tavira.
O poço Vaz Varela fica à saída da cidade, à esquerda, estrada que vai para Vila Real de Santo António. Está aberto junto da cerca do antigo convento dos frades do Carmo. As maldades praticadas pela moura, partindo os cântaros das pobres mulheres que ali iam buscar água, e arrastando as infelizes pelos cabelos ao fundo do poço, tornaram-na antipática a toda a gente. Passados muitos anos tornou o poço a ser visitado, porque então pouco se falava já da moura, ou porque outros poços não tinham água.
(…) Uma vez passou certa mulherzinha próximo do poço com uma criança pela mão. Junto do poço estava estendida uma esteira de figos a secar ao sol.
Muito naturalmente a criança começou a chorar porque a mãe não lhe consentiu que fosse à esteira buscar alguns figos. Então apareceu a moura e deu à criança dois figos desaparecendo em seguida. Ficou a criança muito satisfeita com os figos guardando-os nos bolsos para os mostrar ao pai. Logo que chegou a casa correu a mostrar os figos a uma sua irmã.
Ficaram todos admirados quando viram na mão da criança dois belos dobrões em ouro.
Foi este um caso tão falado que a moura começou então a subir no conceito geral. Também consta que em tempos passados, quando alguns cavaleiros da vila, entusiastas de caça grossa, iam à serra caçar javalis, viam-se as vezes acompanhados de formosa dama montada em valente corcel alazão. Por diversas vezes tentaram investigar de onde tal dama saia, e nunca isso lhes foi possível. Costuma ela pedir aos que lhe passam próximo a desencantem, prometendo-lhes muitas riquezas.
Algumas pessoas extremamente condoídas e impressionadas têm acompanhado a moura até ao palácio encantado, mas, logo que avistam o dragão, fogem espavoridas, gritam à moura que as tire dali, e a moura, da melhor vontade, embora com o coração dilacerado, as tem dali tirado para fora. As que tem ocultado tal visita vivem por muito tempo, mas as que se atreveram a contar o que lá viram, tem morrido dentro de três dias. No princípio a moura Fátima não se portava lá muito bem com as pessoas que iam ao poço ou lhe passavam próximo. A tradição encarrega-se de apontar alguns casos em que quase sempre ao aproximar-se da cidade, ela desaparecia por encanto. No dizer dos caçadores tão encantada parecia a moura como o corcel.” (Oliveira, 1996, 181 a 191).
Segundo Ataíde de Oliveira, a moura do poço Vaz Varela é garrida, arrojada, rebelde e vingativa; enquanto que na lenda do castelo de Tavira a moura é recolhida, humilde, submissa e incapaz de fazer mal, embora esta também se recolha no poço do castelo de Tavira para só subir à torre do castelo na noite de S. João.

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