Portugal atravessava um dos períodos mais negros da
sua história: a guerra civil fratricida, que opôs os irmãos D. Pedro e D.
Miguel, ou seja liberais e absolutistas.
Desde sempre afeta à causa liberal, Albufeira foi a
primeira povoação algarvia a aclamar a Constituição vintista, e quando em 1828
a generalidade do Algarve aceitava o governo de D. Miguel, Albufeira levantava
nova proclamação a favor do liberalismo. Não admira, pois, o ódio de estimação
que as tropas miguelistas nutriam pelos habitantes da vila.
A 24 de julho de 1833 os liberais foram recebidos
triunfalmente na capital do país, após uma travessia fácil do Algarve e do
Alentejo, Albufeira vivia por esses dias, em contra-ciclo, um clima de terror,
que a levaria dois dias depois à capitulação e consequente aclamação do rei
absoluto D. Miguel.
Tudo se passou nos dias 24, 25 e 26 de julho. Para
restaurar o poder de D. Miguel, Remexido e os seus guerrilheiros investem sobre
Albufeira, que aclamara, mais uma vez, apenas D. Pedro, aquando da passagem dos
liberais em direção a Lisboa.
A 19 de julho, Remexido e os seus homens atacam São Bartolomeu
de Messines, assassinando habitantes e soldados e simultaneamente anunciando
que iriam avançar sobre Albufeira, para aniquilar todos os seus moradores.
A notícia do infausto acontecimento chegou à então
vila na manhã do dia seguinte e logo os albufeirenses, perplexos, organizaram
um batalhão de voluntários.
Milícias inexperientes
Na madrugada de 22 de julho, são identificados na
periferia da vila alguns guerrilheiros, sendo os piquetes de vigilância
reforçados.
O toque a rebate soou no dia 23, pelas 8 horas da
manhã, e toda a defesa se concentrou no interior das velhas muralhas do
castelo.
Uma cortina de fogo contínua acendeu-se durante todo o
dia, num gasto inexplicável de munições, que em nada afetava o cerco que os
guerrilheiros tinham posto a Albufeira.
A inexperiência dos defensores da vila era evidente,
além de serem poucos, já que a força de milícias era essencialmente composta
por idosos (antigos combatentes durante as invasões francesas de 1808) e muitos
jovens que, pela primeira vez, pegavam em armas.
As casas que se situavam fora do perímetro amuralhado
começaram a ser pilhadas. Os guerrilheiros penetravam no seu interior, abrindo,
com picaretas que traziam, passagens de umas para outras, saqueando-as e depois
queimando-as.
Do alto da muralha, os sitiados olhavam impotentes o
espetáculo «horroroso» do incêndio da vila e da perda consequente dos seus
bens, enquanto ouviam o tropel «das cavalgaduras em que os salteadores
transportavam os roubos». O braseiro crepitante iniciava-se.
O tiroteio prolongou-se durante toda a noite e as
pilhagens intensificaram-se.
Na defesa, generaliza-se o receio pela falta de
munições e a descrença da possibilidade de conter o assalto. Uma proposta de
retirada pelo mar chega a ser discutida, entre o governador, membros da Câmara
e população em geral, mas o comandante da praça, Francisco Cabrita, opôs-se,
alegando ser do mais sagrado dever não atraiçoar a confiança neles depositada.
A situação continua, porém, a degradar-se, empolada
pela escassez de água e consequentemente pelo rigoroso racionamento imposto.
Rendição parece ser a única
salvação, mas..
Perto da meia-noite e dado o estado crítico que se
vivia, o comandante convocou nova reunião de emergência na Câmara. Nesta
assembleia concluiu-se existirem três soluções possíveis: a primeira era a
tentativa de resistência, na possibilidade de chegarem reforços; a segunda
consistia na retirada, embora com poucas possibilidades de salvação; e a última
a capitulação.
Reunido o conselho a decisão é tomada, apesar de
algumas reservas, por unanimidade: será a rendição.
Na manhã seguinte, dia 26 de julho, «dia fatal, de
horror luta e cruel recordação», a Câmara redigiu uma ata para ser entregue a
Remexido.
É então escolhido como mensageiro da capitulação o padre
de Ferragudo, o qual, trajando uma samarra e barrete, segurando na mão uma
bengala de onde pendia uma bandeira branca, assomou do cimo da muralha e
preparou-se para descer por uma escada para o exterior.
Por volta das 8 horas o pároco regressou, empunhando
novamente a bandeira branca, mas agora acompanhado por um grande número de
guerrilheiros de aspeto barbudo e de olhar desconfiado, que logo lançaram mão
de todas as armas de fogo que encontraram.
Remexido entrou pouco tempo depois na vila,
acompanhado pelo segundo comandante da guerrilha, capitão António Sousa Grade,
do capitão António de Sousa Castelo Branco e do alferes da Ribeira do Algoz.
O ato de capitulação foi marcado para a Câmara
Municipal. Nela estavam presentes o governador Joaquim Gonçalves, todos os
vereadores e demais individualidades civis, apenas faltando o comandante da
praça Francisco Cabrita.
O próprio governador ofereceu os seus préstimos ao
serviço de D. Miguel, enquanto o capitão Biker, num gesto de dignidade,
entregou a banda e o talim, e declarou-se prisioneiro de guerra. Ambos, apesar
de comportamentos opostos perante o inimigo, viriam a ter o mesmo fim trágico.
Álcool e sede de vingança
Na praia de Albufeira foram
sepultados alguns cadáveres
A calma aparente e doentia que se fazia sentir foi
quebrada algumas horas depois. O álcool ingerido pelos guerrilhas começou a
surtir efeito. É então pedido a Remexido, pelo capitão Sousa, autorização para
matar alguns liberais, para evitar que estes se amotinassem.
Remexido recusa. Todavia, e após longa insistência,
permitiu que alguns liberais fossem levados para fora da vila, junto à Vargem
da Orada e aí, alegando-se uma tentativa de fuga, que fossem abatidos.
Entretanto, um acontecimento antecipa a iminente
chacina: o aparecimento de um barco de guerra, enviado de Faro pelos liberais,
que se dirigia para terra, fazendo sinais sobre a vila, apesar de observar a
bandeira miguelista hasteada.
Os albufeirenses, pressentindo a salvação, abandonaram
os guerrilheiros, os quais, atónitos perante o que estava a acontecer, logo que
souberam da presença da embarcação inimiga, resolveram armar uma peça de
artilharia e fizeram fogo sobre ela.
O comandante do navio não arriscou a atracagem e
fez-se novamente ao largo. A vila e os albufeirenses ficavam entregues a si
próprios.
A presença da embarcação liberal originou um
sentimento de traição entre os guerrilheiros, pelos habitantes da vila. Um
grito ecoou então pelas ruas – “traição” – seguindo-se uma perseguição feroz a
todos os liberais e consequentemente que se consumasse o massacre.
Este sempre acompanhado da vozeria: “Viva a Virgem
Santíssima, vivam as Cinco Chagas”.
A primeira vítima mortal foi o assentista João de
Sousa Ramos, que regressava a casa após ter ido comprar pão, depois o padre
Lázaro, prior de Alcantarilha, Mariano José Pereira e o governador Carvalho,
quando saíam da Câmara.
Mas a chacina ocorreu em praticamente todas as ruas,
como a da igreja velha, Misericórdia, ou o largo de S. Sebastião.
Escondidas em casa ou em edifícios públicos, as
vítimas eram arrastadas para a rua, muitas vezes atiradas pelas janelas, e aí
chacinados com balas, pedras e também à coronhada.
Ainda hoje estandarte municipal tem
manchas do sangue derramado
Texto de Aurélio Nuno Cabrita
Temas Albufeira, História&HistóriasVer mais em: http://www.sulinformacao.pt/2013/07/albufeira-viveu-momentos-de-terror-ha-180-anos-com-o-ataque-de-remexido/
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